http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=111
‘No estágio atual, é guerra: um Estado de Bem-Estar Social não é possível mais em lugar nenhum do mundo’

O
que há em comum entre o ajuste fiscal que ameaça retirar direitos dos
trabalhadores no Brasil e as medidas de austeridade que levaram milhares
de gregos, espanhóis e portugueses às ruas nos últimos meses? Para Sara
Granemann professora da Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro que acaba de voltar de um pós-doutorado em
Portugal, o que está acontecendo nos países da Europa do Sul é um
processo de “latinoamericanização”. Com isso, sociedades que tinham
conquistado importantes direitos sociais, através de revoluções ou da
experiência do Estado de Bem-Estar Social, hoje adotam uma “política de
mínimos”, em que as políticas sociais se tornam um meio de transferir
recursos do fundo público para o capital privado. E esse modelo, segundo
Sara, tem, em grande medida, o Brasil como referência mundial.
Nesta entrevista, além de descrever com mais detalhes a situação de
Portugal, ela explica as origens históricas da política de austeridade —
que no Brasil surge como contrarreforma do Estado —, analisa a “divisão
de tarefas” desse processo entre os governos Fernando Henrique, Lula e
Dilma Rousseff e desmistifica a ideia de que ajuste fiscal e austeridade
significam menos gastos públicos. Sem arriscar dizer no que vai dar,
ela também ressalta a importância da reação que tem se construído na
Europa por meio de partidos como Syriza, na Grécia, e Podemos, na
Espanha.
A que momento se pode remeter a forte política de austeridade
que recai hoje sobre países como Grécia, Portugal, Espanha e Itália?
A determinação de fundo, na minha compreensão, está relacionada ao fim
daquele ciclo mais "virtuoso" de extraordinários lucros que
possibilitaram enorme crescimento do capital no pós-2ª Guerra Mundial,
quando, por essas e outras razões, foi possível o Estado de bem-estar
social. Até esse momento, ainda havia lugares e setores da economia que
tinham possibilidade de crescimento e de se tornarem capitalistas. Não é
possível aprofundar esse tema agora, mas é preciso relacionar esse
momento virtuoso em uma parte do mundo — a Europa — com a barbárie em
curso na África e em muitos países da América Latina, que foram
submetidos a ditaduras cruéis do grande capital. Outro elemento
importante para garantir um certo fôlego na manutenção das estruturas
dos Estados Sociais e de direitos dos trabalhadores no continente
europeu foi a conversão dos países do Leste Europeu ao modo capitalista
de produção a partir de 1989. Mas, uma vez esgotada a possibilidade de
expansão da acumulação capitalista pela expansão territorial, a lei
férrea do modo capitalista de produção impõe-se sobre aquelas áreas que
antes eram ocupadas pelo Estado. Refiro-me a um fenômeno que não é
original desse período, mas que ganha agora uma qualidade nova: a
privatização do fundo público, que deve ser transferido aos capitais já
que o Estado não deve ser tão largo. Aquela fração do mesmo fundo
público que viabilizava as políticas sociais como direito dos
trabalhadores passa a constituir os montantes que, por múltiplas e
facetadas formas, devem ser agora transferidas aos capitais. Essas
medidas exigem também mudanças no léxico a cada vez que fraquejam na
sua capacidade de convencimento das suas vítimas. Assim, racionalidade
do Estado, enxugamento, vida acima das possibilidades, déficit,
austeridade são expressões diversas para justificar a mesma política de
aumento da exploração do trabalho. São austeros os capitais, são
imprudentes, gastadores irresponsáveis os trabalhadores. Então,
austeridade tem que ser para e sobre os trabalhadores. Em Portugal, por
exemplo, os políticos e os capitais, dizem que os trabalhadores viveram
acima das suas possibilidades; curiosamente, essa constatação não faz
referência à porção do fundo público destinada aos capitais durante suas
crises e fora delas. Portugal, nisto foi emblemático: no ano de 2014, o
socorro ao BES (Banco Espírito Santo) realizou-se amparado no fundo
público, o mesmo fundo que não se pode utilizar para as aposentadorias
(ditas reformas, naquele país) por conta de uma "gestão austera". As
crescentes transferências justificadas pela redução dos Estados (a
privatização das empresas) já foram chamadas por neoliberalismo, Estado
agigantado e ineficaz, austeridade e muitas outras vazias expressões. O
modismo acelerado da troca de expressões para explicar a continuidade e o
mesmo exige novidades para fazer parecer que estamos diante de uma
nova situação, sempre mais grave, mais catastrófica, mas que poderá ser
resolvida se os responsáveis por ela - os trabalhadores, sempre
responsáveis pelas crises - comportarem-se com responsabilidade.
Austeridade consistiria aí em fazer uma correção da rota. Ser austero é
ser rigoroso, cuidadoso, prudente. A crise dos anos 1970, o começo do
esgotamento desse ciclo de crescimento pós-guerra traz um sinal muito
claro: o modo de produção capitalista está começando a ter mais uma das
suas dificuldades de crescimento – e eu não acho que seja parecida com
as outras, acho que é mais grave. Com o fim do Leste Europeu, há um leve
refresco para esse crescimento, mas aí vêm Margareth Tatcher e Ronald
Reagan. Eu acho que a política mais recente de austeridade tem suas
raízes aí, no marco temporal que cobre dos anos 1970 ao começo dos anos
1990. Aí começam as políticas que já foram chamadas de ‘ajuste’ e agora,
na Europa, se chama de austeridade. Bom, o bloco de regramento de
países europeus começa com a construção da Comunidade Europeia, do Euro,
de todo aquele disciplinamento imposto aos países para que pudessem
participar de um bloco econômico. E para isso era preciso fazer já
alguns ajustes: de produtividade, de contratação da força de trabalho,
de valores de remuneração do trabalho necessário, etc. Mas ainda não era
tão brutal como aquilo que se desenhou a partir de 2007/2008, com a
crise. Nesse momento, o ajuste, evidente, nos países da Europa no Sul —
mas que não é diferente do que acontece aqui —, significa claramente
ser austero com os "muitos" direitos que os trabalhadores conquistaram
por meio de uma legislação de trabalho um pouco mais protetora.
Você conheceu de perto a experiência de Portugal. Como esse processo está se dando por lá?
Lá os trabalhadores conseguiram, especificamente a partir da Revolução
dos Cravos, de 1974, direitos que nunca tinham tido, direitos que
inexistiam em Portugal e na Espanha mas que já tinham vigência na
Inglaterra, França, Suécia, Alemanha, Itália, como jornada de trabalho;
salários não generosos, mas decentes; a construção de uma política
social universal de educação, saúde e segurança social (que é como eles
chamam a previdência), e de habitação. Essas políticas básicas de
emprego e políticas sociais são de construção recente em Portugal. A
revolução em Portugal durou cerca de 19 meses e o que aconteceu depois
foi um acordo pelo alto e uma “democratização”, que na verdade foi a
reconstrução da política burguesa. Só que como tinha havido uma
revolução, os direitos sociais tinham que ser garantidos. Porque a
burguesia foi corrida de lá — uma parte muito importante dela veio para o
Brasil —, o dinheiro no banco foi bloqueado pelos trabalhadores. Com a
“reinstitucionalização democrática”, ela voltou aos poucos, recebeu
indenizações — porque havia deixado suas casas e suas fábricas, muitas
delas ocupadas pelos trabalhadores, num modelo de autogestão. Então,
mesmo quando acontece uma “redemocratização” burguesa – posto que a
revolução dos trabalhadores não é aceita como parte do regramento
democrático; ou seja, a expropriação dos exploradores não é democrática
–, mesmo assim a burguesia não teve como retirar os direitos alcançados
pela revolução dos cravos no período imediatamente posterior à sua volta
ao país. O ataque aos direitos teve de ser uma medida urdida com
cuidado: suas primeiras iniciativas ocorrem por volta dos anos 2000, com
os socialistas. Aí começam a tirar aquelas coisas que parecem pequenas,
e que não se nota no dia a dia, mas que, quando se faz um acúmulo de
todas elas, a população vê que foi muito. Por exemplo, a agenda de
atendimento nos hospitais e postos de saúde começa a ser mais demorada,
começa a priorizar um certo tipo de doenças a serem atendidas. Ah, bom:
uma gripe é secundária com relação à hemodiálise. Mas antes não era
assim. São exemplos até singelos que eu estou dando, para mostrar que
isso foi uma desconstrução. E um povo que nunca tinha tido esses
direitos passou a ter uma certa confiança cultural de que esses direitos
não seriam alterados nunca. Então, deixou a política para os políticos,
que é um pouco o que aconteceu em quase todos os países. E os
políticos, deixados à sua própria sorte, não representam os
trabalhadores; em sua maioria, representam o capital. Agora, com a crise
de 2007/2008, Portugal teve que fazer um novo ajuste. Os grandes
capitais, pela via da Troika, passam a exigir da periferia da Europa
regramentos condizentes com a produtividade do trabalho já que ela tem
uma alta produtividade do trabalho, mas não tão alta como a da Alemanha,
por exemplo. Isso não quer dizer que eles não sejam explorados e que
não exista também o desigual e combinado – em Portugal na Volkswagen a
produtividade do trabalho é altíssima com salários muitíssimo inferiores
aos pagos pela empresa na Alemanha. Mas para esse conjunto de
trabalhadores da Europa do Sul exigem-se reformas como, por exemplo, a
oferta de saúde só para aqueles que não consigam pagar por ela – em
Portugal, para ser atendido pelo sistema nacional de saúde sem pagar as
tais “taxas moderadoras”, há que se provar que é pobre, que ganha até um
determinado percentual do salário mínimo. As universidades públicas
requerem o pagamento pelos estudantes de taxas chamadas de “propinas",
que podem alcançar os 1200, 1400 euros ao ano. Essa tragédia tem
empurrado uma parte importante da juventude para fora do ensino
superior.
Todas essas mudanças se dão a partir de 2007/2008?
As taxas moderadoras na saúde sim e o agravamento das propinas também.
Elas já existiam na universidade desde, talvez, 2001, mas eram como uma
pequena taxa de matrícula. De 2010 para cá, são outra coisa. Foi quando a
Troika chegou a Portugal e impôs o “memorando do entendimento”, como
fez na Grécia, que a situação de vida e de trabalho da classe
trabalhadora portuguesa agravou-se perigosamente. Esse memorando diz o
que tem que se fazer, diz qual política os soberanos governos devem
implementar. É de 2010 e se renova todos os anos para garantir os
empréstimos ao país que está em crise. A austeridade implica — e eu digo
isso com ironia — a “democratização” das condições rebaixadas da Europa
a partir de um referencial da América do Sul, uma latinoamericanização
cujo modelo principal é o Brasil.
Em que essa política de austeridade na Europa se parece com o Brasil?
Na redução dos direitos pela reforma das políticas sociais, que são
rebaixadas. Em Portugal, havia uma escola em cada aldeia, agora estão
fechando e transportam as crianças e jovens de ônibus de um lugar para
outro. Os direitos do que eles chamam de contrato coletivo — férias, 13º
salário — começam a desaparecer ou ser reduzidos: os servidores
públicos tiveram em 2011 ou 2012 uma redução que chegou a quase 30% do
seu salário. Não é que não tenham recebido aumento de salário pela
inflação: o Estado cortou os salários, com a justificativa de manter o
emprego. O outro pilar dessa austeridade via Estado é tornar o fundo
público devedor de títulos públicos, securitizar o fundo público. Para
aumentar o fundo público – que é a política de austeridade – o Estado
tem que vender títulos e, com isso, aumenta a dívida. Eu diria que a
forma dessas sociedades está ficando muito parecida com a do Brasil por
esses três caminhos.
Ao par disso, tem se desenvolvido lentamente uma política de repressão
na Itália, na Espanha, na França e na Alemanha, embora ainda não tão
forte como aqui. Tem aumentado nesses países a violência policial sobre
os mais pobres, os que vivem em bairros sociais, os trabalhadores mais
precarizados e os imigrantes. A austeridade consiste nisso. Na Itália,
por exemplo, os trabalhadores que vêm do Norte da África que chegam
naqueles navios fantasmas ficam em guetos que são chamados de
instituições de acolhimento, mas na verdade são prisões. Essa é a ajuda
humanitária. Eles chegam em muita quantidade, são milhares de imigrantes
esfarrapados, em navios fantasmas, que agora são abandonados em alto
mar. A tripulação vai embora e deixa os imigrantes no navio ligado, no
piloto automático, em direção à costa, para que peçam socorro. A Europa
tem estimulado a população a tratar os imigrantes como estranhos.
Austeridade acaba dando vazão para o crescimento da xenofobia porque
reduz o emprego.
Como essa política tem afetado os direitos trabalhistas?
Eu vou te dar um dado que eu recebi recentemente — compilado pela
pesquisadora Maria da Paz Campos Lima, do grupo de estudos de que faço
parte em Portugal — que ilustra as consequências dessa austeridade. Em
Portugal, o número de trabalhadores abrangidos pelos contratos coletivos
era de quase 2 milhões em 2008. Contratos coletivos são os contratos de
uma categoria. Em 2008, eram precisamente 1.894.846. Ou seja, quase
metade dos trabalhadores assalariados. Hoje, em 2015, só 246.643
trabalhadores, cerca de 5% da população ativa, são protegidos por
contrato coletivo. Lá existe uma coisa que eles chamam de trabalho “a
recibos verdes”, que são uma flexibilização da legislação trabalhista,
do contrato coletivo. O Estado paga uma parte ou dá isenção ao
empregador que contrata a recibos verdes. Quem é contratado a recibos
verdes não tem direito a férias remuneradas, 13º terceiro salário e o
valor do seu salário é menor. Então, é o rebaixamento do valor da força
de trabalho, com um contrato individual e sem direito algum. Isso se dá
com a política de austeridade da troika — que é quem impõe essa
política, claro que em consonância com os burgueses de cada país —, de
2008 para 2014, que é o período que a crise bate em Portugal e a partir
de 2010, 2011, com o memorando do entendimento. É brutal. Temos um êxodo
gigantesco de força de trabalho. Nas décadas que se seguiram à
revolução de abril de 1974, Portugal foi um dos países que alcançou,
proporcionalmente a população, um dos maiores índices de doutores da
Europa. Mas eles não têm onde trabalhar. Ou trabalham a recibos verdes
ou migram. Eles têm migrado, e muito.
Essa política de austeridade também recai sobre os países que não são da periferia da Europa?
Claro. Especialmente na França e na Alemanha, a locomotiva da Europa, os
salários estão sofrendo um rebaixamento e diminuição dos postos. A
grande massa de imigrantes portugueses, espanhóis que vão para a
Alemanha começa a ter dificuldade de manutenção dos seus empregos lá
porque também começam a sofrer uma disputa grande com os alemães. Eles
são estimulados a ir, tanto pela Alemanha e França quanto pelos países
que estão em crise. O primeiro ministro disse para os trabalhadores
portugueses no ano passado: imigrem, não tem emprego aqui. Só que quando
eles chegam à Europa pujante, aumentam a oferta de trabalhadores
dispostos a qualquer trabalho e isto faz cair o valor da força de
trabalho empregada, inclusive da nativa. Quando os empregos começam a
restringir, a própria classe trabalhadora começa a hostilizar os
trabalhadores vindos de outros países; começam a crescer fenômenos como o
da xenofobia.
E no Brasil? A partir de que momento podemos identificar mais claramente a prevalência de uma política de austeridade?
Eu acho muito boa a inspiração do Otavio Ianni — que ele não desenvolveu
muito mas está no livro ‘Ditadura do grande capital’ — que mostra como a
dívida tem, da ditadura para cá, dois momentos muito marcados. Naquele
momento a dívida foi um dos elementos para a ditadura fazer o trânsito
consolidado – que já vinha acontecendo desde JK pelo menos — da economia
brasileira para a idade dos monopólios. O endividamento foi um
mecanismo de “modernização” das estruturas do Estado e produtivas para o
país, o que incluiu a construção das estruturas financeiras que ainda
não existiam: remodelação da bolsa de valores, construção da Comissão de
Valores Imobiliários, bancos nos estados, um conjunto de organismos
necessários a um novo momento do desenvolvimento capitalista no Brasil.
Então, a dívida era um instrumento para essa “modernização” (com muitas
aspas, porque é a modernização capitalista) necessária à passagem para
um novo momento. A dívida, nesse período da ditadura, é especialmente
dívida externa. Houve aquele crescimento brutal, passamos por Sarney e
veio a Constituição. Eu não faço parte daqueles que consideram que se
instaurou aqui naquele momento um certo Estado de Bem-Estar Social
porque o que houve foi muito limitado e não se deu como naquelas partes
da Europa em que isso foi desenvolvido. Para ser Estado de Bem-Estar
social exigiria políticas sociais e políticas de emprego combinadas, de
desenvolvimento econômico. O que a gente conseguiu foi só nessas três
políticas — saúde, previdência e assistência e um pouco também na
educação, só no que diz respeito à universalização —, que passam a ser
políticas que recebem algum destinamento do fundo público mais regrado a
partir de 1988. Só que já em 1990 essas políticas começam a ser
desmontadas. Como teve o impeachment, deu uma certa parada.
O segundo momento, que eu identificaria mesmo como o do ataque a essas
políticas, começa com Fernando Henrique. É um projeto profissional,
científico, organizado, muito bem construído do ponto de vista do
capital de reestruturação do Estado. Aquilo que nós chamamos de
contrarreforma já é a austeridade aqui. É nisso que consiste a
austeridade: o Estado entregar o fundo público ao capital, gastar menos
com direitos sociais, com políticas sociais e destinar esses recursos ao
capital. Só que tem um limite em vender os bancos, as empresas: o
limite é que elas acabam. O fundo público alocado nas políticas sociais é
renovado todos os anos, todos os meses, todos os dias por meio dos
impostos. Então, me parece que o capital acordou para esse maná de
dinheiro. Existe uma divisão do trabalho com relação a essa política de
austeridade. Fernando Henrique faz a contrarreforma do Estado, prepara
os instrumentos para a continuidade disso, mas não consegue realizar
todo o projeto. Então, continua a venda das estatais, privatiza os
bancos, enxuga o Estado, põe maiores dificuldades para o alcance das
políticas sociais. Lula e Dilma também privatizam aeroportos, estádios,
estradas, mas atuam já num segundo momento da austeridade, no uso do
fundo público para os trabalhadores. E no que consiste? O Brasil é
emblemático e modelo numa política social que está se desenhando
especialmente na Europa do Sul, que é essa política social de mínimos,
de destituição de direitos, para usar menos recursos do fundo público, e
ao mesmo tempo para abrir espaço para novos negócios. Retira-se
dinheiro das políticas sociais para que sobre mais dinheiro para essa
nova forma do segundo momento da dívida, o que é uma manipulação do
fundo público para pagar os títulos públicos. Isso é algo novo, não
porque antes não existisse, mas porque ganha uma centralidade no
montante do fundo público que é destinado para isso enquanto para as
outras coisas tem-se uma redução brutal. Esse é o modelo brasileiro.
No senso comum, a defesa da austeridade se baseia num discurso
de diminuição de gastos do Estado. Hoje, vê-se claramente um grande
fluxo de transferência direta de dinheiro do fundo público para empresas
privadas, por exemplo, na educação, com programas como Prouni, Fies e
Pronatec. Como isso convive com esse discurso de austeridade? Porque não
tem diminuição geral do gasto do Estado no Brasil hoje.
Nem no Brasil nem em lugar nenhum. Ajuste, austeridade são formas
ideológicas de embalar uma transferência monumental de recursos públicos
e um assumir cada vez mais do Estado que é um Estado de classe. Em
Portugal, é desenvolvido o tempo todo o discurso de que vivemos acima
das nossas possibilidades. Então, o ajuste tem que ser feito nas
políticas sociais, porque os trabalhadores é que estão vivendo acima do
que o Estado pode bancar. É claro que por ser muito hermética a economia
diária do capital, as pessoas não entendem de dívida. É um assunto
muito difícil de decifrar: o que é um título público, para que ele
serve... O capital entendeu o seguinte: há um limite para construir e
vender carros, computadores, celulares e tudo no planeta. Além disso,
não há mais espaço físico para ser integrado na acumulação capitalista —
a China já está integrada, quem mais vai sobrar? A coreia? Sim, mas
isso não resolve a crise. Diante desse cenário, há que se utilizar mais
do que nunca o fundo público. Nunca na história foi tão absolutamente
claro pela análise do fundo público que esse é um Estado de classe. A
burguesia se reapropria daqueles fundos que antes tinham alguma
destinação para o trabalhador. De que forma? Reduzindo os recursos
destinados à política social de modo direto: essa é condição para abrir
novas frentes de acumulação, na previdência privada, na educação
privada... Só que, ao mesmo tempo, esses novos campos de acumulação não
têm gente que possa consumir esses serviços. Não dá para consumir essas
mercadorias em quantidades de modo a garantir uma lucratividade média
elevada. Você forma o maior conglomerado de ensino privado superior no
Brasil mas à custa de financiamento público para que os estudantes
frequentem essas universidades. Então, o fundo público, transferido
assim, parece até que é outra forma de direito. O menino que tem a
bolsa, que vai lá para o Prouni, acha que isso é um direito. O fundo
público está sendo transferido para a instituição e endividando o
trabalhador. Sem o Estado transferindo essas quantidades amazônicas de
recursos no Brasil, em Portugal, na França, na Alemanha e nos Estados
Unidos, o capitalismo já teria colapsado.
A presidente Dilma fez recentemente um discurso televisivo em
que anunciava claramente medidas de austeridade. Parece um movimento de
retirada de direitos mais abrupto do que se teve nos últimos 12 anos. O
que está acontecendo no Brasil hoje?
Eu acho que nós vivemos sob essa austeridade também nos governos Lula
brutalmente, mas havia medidas que pareciam fogos de artifício, ou seja,
tinham algum impacto. Em Portugal, uma importante médica, professora
universitária, me disse: ‘Sara, a FAO [Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e Agricultura] acaba de mostrar que a fome reduziu no
Brasil e isso é inegável’. Aí eu disse: ‘Professora, deixa eu falar
para a senhora como é o Bolsa Família, esse que reduz a fome. São cerca
de 45 euros por mês para a família’. Ela respondeu: ‘Não é possível. A
sua oposição à política do governo deve estar te fazendo se enganar na
conversão do euro’. Mostrei a ela os recursos do Bolsa Família e ela não
acreditava. Como nunca teve Estado de Bem-Estar Social, como nunca teve
política universal de combate à fome, a miséria é tanta no Brasil que
40 euros mensais numa família com três crianças têm algum impacto. Sim, é
um impacto quantitativo: farinha e feijão. Não é um impacto
qualitativo, de reversão da fome, de reversão da miséria intelectual que
a dieta impõe, etc. Eu diria que, do ponto de vista dos mais pobres,
foi sempre austeridade, na medida em que essas políticas nunca foram
para retirar os trabalhadores dessas condições. Mas vamos lá: é verdade
que as camadas médias viajaram mais, que os trabalhadores moradores das
grandes cidades passaram a comprar TV, geladeira, computador. Está bem:
aceitamos tudo isso. Essa bolha de consumo se fez em função de crédito
para o trabalhador. Uma das pernas do endividamento é feito sob o
crédito consignado para os trabalhadores do serviço público e para os
aposentados, que são aqueles que, como têm um ganho salarial mensal,
podem financiar para a família que perdeu o emprego a compra da TV, a
partir do crédito consignado que o banco dá, com a garantia da
aposentadoria. Isso foi o governo Lula que fez. Eu tenho chamado esse
instrumento de política social dos governos Lula e Dilma de
monetarização e financeirização, que é a conversão da política social na
forma dinheiro e que, portanto, entra pelos condutos da
financeirização, pelas instituições bancárias, e se torna crédito. Marx,
no livro 3 [do Capital], tem uma genial sacada, em que ele diz que todo
o dinheiro disponível na sociedade progressivamente vai se tornar
capital monetário, que é capital moeda guardado pelos bancos, e esse
capital vai se transformar em capital portador de juros porque ele vai
ser emprestado. O que esses caras fizeram? – é por isso que o Obama
chama o Lula de ‘o cara’, né? Fizeram do fundo público destinado às
políticas sociais elementos de acumulação para o capital bancário e
financeiro. Transforma tudo isso em dinheiro. Então vai desmontando os
aparatos de realização da política social: desmonta o hospital, mas para
aquele que não pode, atende gratuitamente. E para o outro? Para aquele
que está desempregado e não poderia pagar, dá o emprego a recibo verde —
para voltarmos ao exemplo de Portugal —, e daí considera-se que ele tem
condições de pagar pela consulta. Então, ao transformar a política
social num direito monetarizado, esse dinheiro volta para o capital,
volta para os bancos. A Bolsa Família não é um conjunto de serviços que o
pobre no Brasil pode utilizar: não é escola, não é alimentação na
escola, não é o hospital de boa qualidade. É um dinheiro que ele recebe
via banco e que, individualmente, é uma miséria, mas aquilo que entra no
banco é, na totalidade, um montante muito considerável. Esse foi o
traço mais inovador que esse conjunto de ações que nós chamamos de
austeridade trouxe para as políticas sociais. Porque transferir recursos
pela forma de fundos, de sustentação ao capital, existe no Brasil já há
um tempo. Mas isso foi muito sofisticado, mais complexificado. É esse
momento da política social que o Brasil está exportando como referência.
Isso nasce no Brasil?
O Banco Mundial já sugeria isso como medida. Hayek e Friedman já diziam
que para aquele que não pode pagar, o Estado não deve ter equipamentos
públicos (escola, hospital, bibliotecas), mas sim transferir em dinheiro
para que a pessoa possa escolher, exercendo a sua liberdade de
comprador no mercado. Eles dizem isso lá na década de 1940. Só que isso
não se transforma em política social porque é implementado o Welfare
State, por todas as condições do pós-guerra que tornaram isso possível.
Não é mais possível isso. Eu tenho absoluta convicção de que nós temos
que continuar a lutar por políticas sociais no modo de produção
capitalista, mas no estágio atual, é guerra: um Estado de Bem-Estar
Social não é possível mais em lugar nenhum do mundo. Porque o fundo
público que estaria alocado no Welfare State é absolutamente vital para o
desenvolvimento do capitalismo. Se não, ele colapsa. E aí são as
políticas do Banco Mundial — especialmente os estudos desenvolvidos na
segunda metade da década de 1980, mas essencialmente, nos anos 1990 —
que começam a sugerir a política social como transferência de uma
quantia monetarizada, em dinheiro, para os usuários, para aqueles que
precisam da política social. E, embora existisse, na Bolívia e em alguns
países da América do Sul e Central algumas iniciativas dessas, nunca
tinha se tornado uma política de importância como se tornou sob Lula, no
Brasil. Porque não é qualquer economia. A minha hipótese é que o Brasil
é o padrão de referência mundial para esse novo tipo de política
social, essa nova forma Estado. É por isso que eu chamo o que está
ocorrendo na Europa de latinoamericanização da política social e da
forma Estado. Eu estudava isso no Brasil, cheguei a Portugal — um país
que teve uma revolução que, junto com a do Chile, foi a mais importante
dos últimos 30 anos do século 20 —, e vejo que lá está acontecendo isso.
Aí começo, na relação com os pesquisadores de Espanha e Itália, a ver
que nesses países é a mesma coisa. Há pequenas diferenças de um país
para o outro, mas a referência é Brasil. Claro que esses países não
dizem que a referência é o Brasil, dizem que no Brasil vai tudo bem
porque aqui não teve crise, foi um país que cresceu — e lá aplica-se
essa política. Então, a latinoamericanização, claro, na América inteira
está implementada. A novidade é lá, onde teve Welfare State. A
latinoamericanização se dá nas políticas sociais, nas formas de redução
dos direitos, na redução do contrato coletivo que garante direitos
trabalhistas. E na dívida que passa a ser uma dívida pública, não uma
dívida externa. Junto com essas modificações, tem o aumento da violência
contra os pobres e os organizados. E a polícia lá, que não era
violenta, começa a matar nos bairros sociais.
Temos assistido, na Grécia, por exemplo, a alguma reação da
população, que pede um basta nessas medidas de austeridade. Como você
tem visto essa reação na Europa?
Eu acho que, em dois países, Grécia e Espanha, há tentativas, mas eu não
arriscaria dizer no que vai dar. O Syriza na Grécia e o Podemos na
Espanha são movimentos muito fortes e acho que tem uma coisa para os
partidos da esquerda tradicional se indagarem porque esse crescimento se
faz por fora dos partidos de esquerda tradicionais, em ambos os países.
Em Portugal os partidos da esquerda clássica, com a sua central
sindical, tem por vezes, funcionado como um dique à reorganização dos
trabalhadores, porque eles controlam muito a burocracia dos pequenos
trabalhadores do Estado. Teve uma manifestação em frente à Assembleia da
República em Lisboa, que é como se fosse o Congresso daqui, em que a
população estava absolutamente irada com os parlamentares que tinham
votado a redução da previdência e dos salários dos servidores públicos, e
a central sindical ligada ao Partido Comunista Português interpôs um
caminhão entre os manifestantes e o prédio para obstaculizar a ação; do
lado oposto, a polícia e uma enorme repressão. O Syriza não é uma coisa
única: há no seu interior, trotskistas e lutadores de correntes
comunistas diversas, por exemplo. Ouvi e li um médico grego, um
trotskista de uns 58, 60 anos, que contou como a organização dele que
compõe o Syriza recuperou o trabalho de base na Grécia. Eu fico comovida
com isso, porque o que eles fizeram foi o básico e pelo básico
reconquistaram as pessoas para acreditarem que há um projeto possível de
transformação da sociedade. O trabalho de base era o seguinte: eles
formavam brigadas, iam para as feiras livres com carrinho e conversavam
com os produtores médios que estavam nas feiras, explicando que havia
naquele lugar não sei quantas pessoas passando fome. Organizavam-se por
regiões, começaram a visitar as pessoas que estavam no mais brutal
sofrimento — com toda essa propaganda ideológica, a pessoa vai
deprimindo, achando que ela é o problema: como o professor José Paulo
Netto escreveu lindamente, é preciso culpabilizar as pessoas, para
quebrar a estima de alguém para a luta, você tem que dizer que ela é uma
nulidade, responsabilizá-la por sua triste situação de vida. Aquelas
equipes, grupos, começaram a redistribuir cestas de alimentação que
recolhiam nas feiras e levavam à casa das pessoas. Não tinha Estado, a
família já não podia socorrer, não havia para onde correr. Mas quando
uma pessoa passa a comer porque pessoas solidárias de uma organização
levavam comida, isso não tem volta. Eles não estavam ali para pedir o
voto, estavam organizando a base para ela lutar. Eles atuavam na
alimentação, na saúde geral e na saúde mental. Porque o nível de
depressão e suicídio era grande: em três anos, foram 6 mil suicídios.
Pessoas que perderam o emprego, não tinham o que comer, não tinham mais
energia em casa. Seis mil suicídios foram declarados como consequência
da miséria e da desesperança na Grécia. Eles começaram a recrutar
psicólogos militantes com empregos também ruins que começaram a ajudar
na abordagem que eles iam fazer às pessoas. Como era organizado por
bairro, por rua, eu conheço quais são as pessoas que estão deprimidas,
sofrendo, no meu prédio. Então, eu indico que ali tem gente e aí vêm as
brigadas, os grupos organizados. Ele dizia assim: “tirar a pessoa do
fundo escuro da sua própria alma, porque ela foi quebrada por uma crise
econômica, é ganhar uma fidelidade que ninguém consegue destruir”. Esse
médico disse que trabalhava no seu emprego estatal, onde teve salário
reduzido, e entrou nisso — na verdade, ele liderou uma dessas linhas.
Iam para os lugares e começavam a atender as pessoas, como se fosse um
médico de família, só que não era do Estado porque o Estado se reduziu
tanto que não conseguia mais atender. Então, os médicos trabalhavam e
continuavam a trabalhar depois do horário para atender essas pessoas que
estavam doentes. Além do mais, é um país frio, que tem um inverno de
cinco meses. Já pensou tomar banho, cozinhar, se não tem água? Não tem
gás, não tem energia, não tem a dignidade de um banho. A primeira medida
do Syriza depois de eleito foi religar a energia elétrica gratuita em
400 mil casas, perdoada a dívida. As pessoas vão ter acesso à energia
sem pagar, porque não têm como pagar. Eu não conheço direito todas as
forças internas ao Syriza, mas sei que teve correntes lá que trabalharam
desse jeito. A próxima é a Espanha. O Podemos está com mais de 28% das
intenções de voto. A burguesia na Espanha está enlouquecida porque a
Espanha não é a Grécia, né? A Espanha tem um PIB muito importante dentro
da União Europeia e tem classe trabalhadora organizada, sindicatos
fortes, os operários da Galícia que marcharam sobre Madri. Ali a coisa
pode ser um pouquinho mais animada. Eu não sei se é para ter esperanças,
mas nesses dois países, as placas estão em movimento.
Entrevista concedida a Cátia Guimarães (EPSJV/Fiocruz) em maio de 2015.